José Sócrates pode processar juízes e tribunal por terem acusado o réu sem provas

Ana Fernandes
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Homem de roupas formais caminhando ao ar livre, carregando pastas ou documentos, ao lado de uma cerca de proteção e uma área de grama bem cuidada.
Nem tudo o que parece injusto é ilegal — mas há casos em que o cidadão pode agir. Descubra até onde vai o direito de processar o tribunal por erro judicial em Portugal

José Sócrates pode processar o tribunal e os juízes por falta de prova? Entenda os limites legais em Portugal

Introdução

A acusação contra José Sócrates no âmbito da Operação Marquês contém crimes graves — branqueamento de capitais, falsificação de documentos, abuso de confiança e fraude fiscal qualificada — com alegações de que recebeu milhões de euros de Hélder Bataglia, os quais terão passado pelas contas de Carlos Santos Silva. 

A defesa argumenta que o Ministério Público não apresentou provas suficientes. Surge então uma dúvida essencial: pode um arguido processar o tribunal ou os juízes por “falta de prova” depois de responder ao processo de acusação? 

Quais são os limites legais, os mecanismos existentes em Portugal, e o que a jurisprudência diz sobre esta possibilidade?

1. O que significa “falta de prova” no processo penal?

  • No sistema jurídico penal português, o Ministério Público (MP) tem o ónus da prova — cabe-lhe demonstrar, além de dúvida razoável, todos os factos essenciais à acusação.
  • “Falta de prova” pode implicar ausência de indícios suficientes, provas diretas ou indícios robustos que sustentem os crimes imputados.
  • O arguido tem direito à presunção de inocência (constituída na Constituição da República Portuguesa) — enquanto não for provada a sua culpa mediante processo legal.
  • Se a acusação é rejeitada numa fase de pronúncia ou se houver absolvição em julgamento, isso significa que o tribunal considerou que as provas apresentadas não bastavam para condenar.

2. Processar o tribunal ou juízes por decisão judicial

Em Portugal, processar diretamente juízes ou o tribunal por uma decisão judicial “com falta de prova” implica desvendar o que legalmente é viável ou não. 

Eis os principais vetores:

2.1 Responsabilidade civil do Estado por erro judiciário

Tem-se reconhecido que o Estado pode ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de decisões jurisdicionais, desde que preenchidos certos requisitos. Algumas linhas-chave:

  • O dever de indemnização do Estado pode surgir em casos de erro judiciário — decisões que se revelem manifestamente inconstitucionais ou ilegais, ou que resultem de erro grosseiro na apreciação dos factos. 
  • É exigido, para que haja indemnização, que a decisão danosa seja revogada por instância competente. Ou seja: não basta alegar que há falta de prova; o arguido ou lesado precisa que a decisão judicial seja anulada ou revogada. 
  • O prazo legal e os requisitos formais para instaurar ação de responsabilidade civil do Estado (por erro judiciário) são complexos e estão sujeitos a limitações legais (como prazos, condições de demonstração do erro, etc.). 

2.2 Responsabilidade penal dos juízes?

Em geral, os juízes não podem ser criminalmente responsabilizados apenas por proferirem decisões, mesmo se estas forem incorretas, contanto que tenham agido no exercício das suas funções e dentro dos limites da lei e dos factos de que dispunham.

  • A Constituição prevê imunidade para juízes no exercício da função jurisdicional, salvo casos expressamente previstos em lei. 
  • Para haver responsabilidade penal (ou mesmo civil individual) do juiz seria necessário demonstrar dolo ou culpa grave, violação manifesta da lei ou dos direitos fundamentais, ou uso de meios de prova ilegais, entre outras situações excepcionais. Isso normalmente não inclui “apenas” alegar que a acusação não demonstrou provas suficientes — essa avaliação cabe ao tribunal penal no julgamento.

2.3 Responsabilidade disciplinar

Há, entretanto, mecanismos disciplinares para juízes, com possíveis sanções quando se verifica comportamento incompatível com deveres funcionais ou com decoro jurídico-profissional:

  • A Lei 85/77, de 13 de Dezembro, regula a responsabilidade disciplinar dos magistrados judiciais. 
  • Infrações disciplinares podem decorrer de atos ou omissões que violem deveres ou decoro, mas não necessariamente da decisão judicial em si, salvo se se verificar que houve má-fé ou grave violação normativa. 

3. O caso de José Sócrates e Operação Marquês – considerações práticas

Tendo em conta os factos públicos sobre o processo Operação Marquês, eis algumas implicações específicas:

  • Sócrates tem contestado que “não existe acusação nem pronúncia” válida, o que, na sua perspetiva, torna ilegal prosseguir para julgamento. 
  • Mesmo assim, o tribunal marcou data para o julgamento, entendeu que há decisão de pronúncia ou equivalente que permite a acusação seguir. 
  • A defesa pode usar todos os meios legais de recurso para impugnar decisões que considere viciadas — seja junto do Tribunal da Relação, Tribunal Supremo ou até do Tribunal Constitucional, dependendo do tipo de questão. 
  • Quanto a processar o Estado ou juízes por danos, Sócrates ou qualquer arguido teria de demonstrar:  que a decisão que alega ilegal ou inválida foi revogada;  que houve erro grave ou manifesta ilegalidade; que o dano resultante é efetivo e quantificável; e que os prazos legais para apresentar esse pedido foram cumpridos. 
  • Se faltar prova para acusação, isso pode servir de base para absolvição, mas não necessariamente para responsabilizar os juízes ou o tribunal salvo nas situações extraordinárias acima referidas.

4. Limites e barreiras legais

Alguns dos obstáculos mais comuns a um processo desse tipo são:

  • Prazos de prescrição — muitos direitos de ação extinguem-se decorrido certo tempo; se se deixar passar demasiado tempo, não é possível avançar juridicamente.
  • Prévias decisões transitadas em julgado — uma vez que uma decisão esteja firme, há uma forte presunção de constitucionalidade e legalidade; reverter decisões não é simples.
  • Prova do erro grave ou manifesto — não basta dizer que “não houve prova”; é necessário demonstrar que o tribunal ou juiz cometeu erro grosseiro ou ilegalidade grave ou que usou meios ilegais para aferir os factos.
  • Imunidades institucionais — o juiz tem certas proteções legais no exercício da função jurisdicional, de modo a garantir independência, desde que não haja abuso ou desvio de poder.
  • Custo e complexidade processual — essas ações (de responsabilidade civil, disciplinar ou reclamações constitucionais) envolvem procedimentos complexos, provas, participação de instâncias superiores.

5. Conclusão resumida

Em suma, não é algo simples processar o tribunal ou os juízes apenas por “falta de prova”. 

O sistema legal português permite que: - Sócrates ou outros arguidos incluam nesses seus direitos de defesa recursos e impugnações judiciais — por exemplo pronunciamentos, revisões, decisões de pronúncia, pedidos de absolvição por falta de prova. - Se houver decisão judicial definitiva (ou revogação), em casos de erro grave ou manifesta ilegalidade, pode haver ação de responsabilidade civil do Estado. - Há também mecanismos disciplinares para juízes, nos casos previstos por lei, mas não para reverter automaticamente decisões judiciais que foram somente avaliadas como tendo provas insuficientes. 

 Por isso, embora a defesa possa alegar falta de prova para obter absolvição ou rejeição da acusação, isso não equivale a um direito genérico de processar juízes ou tribunal por “falta de prova”, sem que se provem os requisitos legais mais exigentes.

FAQ

PerguntaResposta
Posso pedir indemnização se for absolvido por falta de prova?Sim, mas só se puder provar erro judiciário (erro grosseiro, manifesta ilegalidade), a decisão tiver sido revogada, e dentro dos prazos legais. Nem toda absolvição por falta de prova implica responsabilidade do Estado ou do juiz.

Os juízes respondem criminalmente por decisões erradas?Muito raramente. Só em casos extremos de crime ou violação grave de deveres legais — julgamentos, em geral, não geram responsabilidade criminal para o juiz apenas por erro de avaliação probatória.
O que é um “erro grosseiro”?É uma falha clara e grave, não meramente discutível, na avaliação dos factos ou aplicação da lei — algo que vá além da normal margem de erro judicial aceitável.

Quais são as vias de recurso disponíveis?Pronúncia, Relação, Supremo Tribunal de Justiça, Tribunal Constitucional (em matérias de inconstitucionalidade), recurso de revisão, reclamação em instância europeia (Tribunal Europeu dos Direitos Humanos) se houver violação de direitos fundamentais.

Se o tribunal decidir avançar mesmo alegando falta de acusação ou pronúncia, isso pode ser contestado?Sim: a defesa pode apresentar incidentes processuais, recursos ou reclamar inconstitucionalidades. Mas não impede necessariamente o prosseguimento do processo, dependendo das decisões judiciais concretas.

Fontes confiáveis

  • Constituição da República Portuguesa — presunção de inocência, direito ao contraditório
  • Lei 67/2007 — responsabilidade civil do Estado por erro judiciário 
  • Lei 85/77 — responsabilidade disciplinar dos magistrados judiciais 
  • Jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa e outros tribunais — acórdãos sobre erro judiciário e requisitos para indemnização }

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